quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Telefone

-Alô.

-Alô, quem fala?

-É o Henrique

-Boa tarde seu Henrique, aqui quem fala é Júlia da central de relacionamento dos cartões Visa.

-Pois não Júlia.

-Estamos ligando para averiguar a situação do plano de faturas automáticas do senhor.

-Certo....

-É que nós vamos estar fazendo uma pesquisa de opinião dentro de algumas semanas e gostaríamos de saber se o senhor pode estar colaborando nesse período.

-Júlia, olha, eu sou um sujeito ocupado e ,assim, não quero parecer grosso ou nada mas esse tipo de coisa não é pra mim.

-Certo seu Henrique então a central Visa agradece e tenha uma boa tarde.

-Perae, fácil assim?

-Perdão senhor?

-É, vocês sempre enfiam uma promoção goela abaixo dagente. Dessa vez não vai ter não?

-Desculpe senhor, não estamos tendo nenhuma promoção no momento.

-Ah, ta certo então.

-Senhor Henrique...

-Oi

-Se o senhor quiser eu posso estar realizando a pesquisa nesse momento.

-Hmm tudo bem então.

-Então se o senhor não tem nenhuma objeção eu vou fazer algumas perguntas.

-Sem problemas

-Estado civil?

-Solteiro.....

-Profissão?

-Desempregado.

-Tá seu Henrique, eu sei que não é da minha conta, mas o senhor não disse ali em cima que era um sujeito ocupado?

-Era pra tirar você do meu pé Júlia. Você e esses gerundismos horrorosos que você vai estar utilizando.

-Poxa seu Henrique, que falta de consideração.

-Ta Júlia, me desculpe..............peraí, isso num era pra ser uma pesquisa de opinião, porque a gente tá tendo essa conversa?

-Desculpe seu Henrique, eu paro se o senhor quiser.

-Não Júlia, não é assim, pode continuar.

-Ai seu Henrique sabe o que é? Eu ando trabalhando demais....

-Imagino....

-Aqui no serviço a gente entra às seis da manhã e só sai às seis da tarde...

-Júlia.......

-Oi seu Henrique

-A pesquisa, Júlia.

-Ai é mesmo né seu Henrique

-Pois é, sou desempregado mas não sou desocupado né Júlia.

-Tá, desculpa seu Henrique, vamos continuar.

-Vai

-Que nota o senhor dá ao atendimento do seu gerente?

-Hmmmm, sete

-Que nota o senhor dá ao atendimento por telefone?

-Três.

-Quê isso seu Henrique! Três?

-É, eu dei três porquê você sabe o que é um gerundismo.Devia dar um zero por você saber e continuar fazendo.

-Nossa seu Henrique,grosseria heim.

-Quer ganhar dois Júlia?

-Tá bom, tá bom,vamos continuar.

.............................................................................................................................

-Pronto seu Henrique, acabou a pesquisa.

-Beleza, é só isso?

-É sim seu Henrique, o Visa agradece sua colaboração.

-Tá certo......Vem cá Júlia, será que eu podia te encontrar qualquer dia desses?

-Quê isso seu Henrique, tá me achando com voz de tele-sexo?

-Não é isso não Júlia, é que tinha um tempão que eu não conversava com uma mulher...

-Ah foi por isso então que o senhor puxou o assunto da promoção né?

-Pois é, mais ou menos...

-Olha seu Henrique, vô te dar um conselho

-Pois dê Júlia, tô precisando.

-VÊ SE PÁRA DE ALUGAR MINHA ORELHA QUE A OPERADORA DE TELEMARKETING AQUI SOU EU.

tu-tu-tu......

Abandono II

I

O homem com ar de malandro entrou na cozinha como se fosse íntimo da casa:

-Bom dia! O negócio é o seguinte, Lia: diferente da minha prima Consciência, que é cheia de não-me-toques e enrolação, eu não fico cozinhando o galo; eu sou o seu Amor e estou saindo do seu coração porquê eu dei um jeito de dar uma espiadinha no que vai rolar lá na frente e acontece que você tá fodida minha filha, fodidinha da silva.

O sujeito nem parecia respirar, descarregava uma frase depois da outra numa saraivada de informações incoerentes para Lia mas que pareciam fazer todo o sentido para ele e até serem bastante coerentes para um cara numa camisa florida e calções acima dos joelhos com uns óculos escuros de quem não quer muito dar bola pra ninguém.

Lia de alguma maneira não se importou com o fato de um total estranho ter invadido sua intimidade e se sentou ainda com uma xícara de café fumegando. De repente ela começou a fazer perguntas como quem tira dúvidas depois de uma palestra:

-Quem é você?

-Eu sou o Amor minha filha, Aquele com “Azão” maiúsculo sabe? Que fazia tudo dar certo nas histórias da sua infância e ainda hoje faz esse seu coração dar uns pulos maiores que o esperado. Sô eu, ao vivo e à cores.

-Tá fazendo o quê conversando comigo?

-Explica minha filha, você é muito devagar no esquema.

-Tô dizendo, eu num devia te controlar ou, sei lá, só sentir você? Quem disse que a gente conversa com o amor?

-Tá maluca minha filha? Sô eu é quem manda nesse circo de hormônios que você chama de cabeça, eu sou o manda-chuva no pedaço ,não importa o que digam a Consciência ou a Razão, aquelas estraga-prazeres. Aliás por falar nisso, pode me interromper a vontade sabia? É que eu falo muito. Mas e aí entendeu?

-É, eu saquei que é você e tal, o tal do amor e tudo mais, mas pra quê a visita? Até hoje você teve meio ausente né?

-Pois é. Foi sobre isso que eu vim conversar. Eu sou meio sumido assim porquê nem eu sei quando vou poder sair por aí fazendo uma boa farra, aí fica meio difícil, mas tem gente que me vê o tempo todo, não dá pra saber quem vai ter essa sorte.

-Ou esse azar....

-Iiiih, num azeda comigo não que sua chance de ficar sabendo o que vai rolar por muito tempo nessa sua vidinha de meia pataca depende da minha boa vontade.

-Caaara como é chato esse amor!

-Tá, fica caladinha aí e escuta. Como eu já disse antes de começar essa palhaçada de conversa, eu tô dando o fora.

-Hmmm como assim, vai embora sem nunca ter feito nada?

-Há, eu já vi o que vem por aí e num vai ser nada bonito, acredite em mim, eu tô te fazendo um favor garota.

-Tá mesmo, pode se mandar.

-Num tá nem curiosa pra saber o que eu vi? O que vai rolar nesse seu coraçãozinho mixuruca?

-Putz, se vai te mandar embora mais rápido, pode contar à vontade.

-Tá, o negócio é que eu dei um jeito de espiar como vai ser sua vida amorosa. E eu descobri que a carga horária é demais pra mim. Não to dizendo que você vai conhecer sete mil pessoas especiais, tô dizendo que vai conhecer só uma e ó, prestenção pra num parecer uma palhaça depois: NÃO VAI DAR CERTO, beleza? Aí você vai por a culpa em mim, xingar todas as formas de divindades possíveis e maldizer a coitada da Sorte por muito tempo. Aí eu resolvi poupar todo mundo dessa trabalheira e dar no pé. Já disse que você pode me interromper? Eu falo demais e esqueço as coisas meio rápido. Bom é isso.

-Uau, é muita coisa pra uma conversa na cozinha essa hora. Bom, tem alguma coisa que eu posso fazer?

-Encomendas. Eu vô pras Bahamas.

-Caramba, meu amor ainda é folgado.

-Quem disse que o amor não tira férias era um baita retardado, quem não tira férias é a razão. Bom, eu to de saída, té mais. Só pra avisar: não adianta me procurar em bicho de estimação, pornografia barata ou dieta milagrosa, quando eu vô eu vô mesmo minha filha, boa Sorte.

-Então tá né........

II

Lia sempre se culpou um pouquinho pelo seu jeito complacente: no dia em que conversou com o Amor, não perguntou se valia a pena tentar, quanto tempo ia durar ou até mesmo como era a vida sem ele. Teve que aprender com a experiência. Mas como não sabia o que era amar, seguiu viagem numa boa pela vida.

A todos os apelos de possíveis pretendentes, Lia sempre repetia as mesmas palavras: “Vá procurar quem te queira, não seja burro homem, eu não fui feita pra essas coisas, me deixe que comigo estou ótima.”. Mas tudo num ar de indiferença polida que rendia os homens e os deixava incapazes de odiar aquela mulher. Simplesmente entendiam, depois de muito tempo, que era uma mulher destinada à solidão.

III

Já quase não se lembrava da imagem do homem que a visitara dizendo ser seu amor. Só restava a forte lembrança do sentimento, da aura daquela conversa pousada na cozinha, na memória, quando a porta, agora outra porta em outra cozinha com outras lembranças, se abriu sem cerimônia.

-Lia...

Era o mesmo homem de tanto tempo atrás, nem mais velho, nem mais novo.

-Você? ....Deu saudade?

-Não vai nem me dar um oi?

-Que foi que anda caladinho agora? E por que só eu tenho cabelo branco nessa conversa?

-Sabe como é né, eu “não tenho idade”.

-Hmmm...e aí, passou uma boa temporada nas Bahamas heim?

-Poxa, não brinca com coisa séria Lia, não tá vendo que eu tô mal?

-Aham, e desde quando o amor precisa de psicóloga?

-Você não sabe a dificuldade que passa um amor sem coração, faz um mal danado, eu não fazia idéia, era burro naquela época.

-E antipático.....

-Tá..

-E egoísta...

-Tá bom, reconheço.

-Assim fácil?

-Poxa, quer que eu faça o quê? Vou beijar seus pés?

-Nah, coisa mais piegas, ainda mais pra um cara que nem você.

-Tem amor por aí que faz isso...nem te conto, é falso que só.

-Continua falando mal dos outros né......

-Foi sem quere Lia, sem querer.

-Tudo bem, depois que o gato comeu um pedaço da sua língua eu até que gosto da sua conversa, ficou mais adulto.

-Eu te disse que era burro naquela época, agora eu sei o mal que causei e.....

-Só se foi pra você mesmo, eu tô aqui numa boa.

-Mas é claro Lia, você nunca soube como seria se eu tivesse continuado aqui.

-E nem começa porquê não quero saber.Nem vem me confundir agora que já

pus a mesa pra um esse tempo todo.Passo muito bem, obrigada, e espero que você também passe muito bem, longe daqui.Se não se importa queria que você fosse embora sem me aporrinhar com perguntas ou trololó, tenho uma porção de coisa pra fazer e conversar contigo não é uma delas, meu filho.

IV

O amor foi embora outra vez, mas agora com um leve sorriso de quem sabe que deixou uma marca; Lia estava falando muito, como ele certa época fazia.

domingo, 19 de setembro de 2010

Abandono

-Bom dia José, sente-se.

-Obrigado.

-Você sabe porquê está aqui José?

-Eu não sei nem quem é você.

-Eu sou sua consciência José.

-Que coisa.Eu achava que minha consciência seria mais bonita;tipo loira assim, gostosa e meio maliciosa, acho que errei.

-Minha aparência não é das melhores, José, porquê sou muito vendida.Engordei um pouco nestes tempo de preocupações e contas atrasadas.E não é da sua conta se eu sou morena.Ou loura.

-O seu português pelo menos é muito bom, melhor do que o meu.Como é que pode?

-É sobre isso que nós vamos conversar hoje.

-O meu português?

-Não José, sobre o fato de você não ter aprendido nada durante sua penosa educação, apesar de ter contato com tudo aquilo.

-Quer dizer, a gente vai conversar sobre eu ter me fodido na escola?

-Também.

-O que mais além disso?

-A sua BURRICE José.

-Burro, eu?

-Acredite em mim, eu vivo dentro da sua cabeça.

-E o quê você vai fazer pra mudar isso?

-Eu, nada, não se pode mudar as conseqüências de maus governantes, sociedades apodrecidas e péssimas escolhas pessoais.Eu não vou mudar você.

-Então? A gente só vai bater papo, assim sem mais nem menos?

-Não José, eu estou aqui para comunicar minha demissão.

-Epa, peraí, você pode fazer isso?

-Você se surpreenderia em saber as coisas que posso fazer, e mais até das coisas que já fiz em sua cabeça.

-Tá, agora eu tô com um pouco de medo.

-Não precisa ter medo José, muitos já passaram por onde você se encontra.

-Como você sabe, se é só minha consciência? Isso não é meio que uma-pra-cada-um?

-Você quer dizer pessoal.E sim, cada um tem uma, mas nós nos comunicamos, nunca ouviu falar em consciência universal?

-Tá, calma lá que isso tá COMPLICADO PRA BURRO.Como eu vou me virar sem consciência?

-José, José, quantos homens você já conheceu sem consciência alguma?Ladrões, cafajestes, chefes de família, policiais, médicos, políticos e os piores deles: aqueles que são a mistura de vários tipos.

-Se você é tão esperta assim, pra onde você vai?

-Você já ouviu falar em física quântica, raios cósmicos?

-Eu nem sei como VOCÊ já ouviu falar nisso.

-É, você vai se dar bem José.Vai se encaixar direitinho no meio do resto deles.

-Eu posso te impedir?

-Não José, essa decisão foi tomada sem seu consentimento, como milhares de outras que o resto do mundo toma por você.

-Ei, peraí, eu tô ferrado!

-Até mais José, qualquer dia eu apareço para te fazer cometer suicídio.Aproveite até lá.

José pegou o carro, foi até uma padaria, comprou um litro de cachaça e seguiu bebendo até em casa.Aquilo se tornou um hábito, beber e não fazer nada.Também se tornou um hábito não permanecer em qualquer emprego por mais de quatro meses.Outro hábito de José era bater em prostitutas pagas para preencher um vazio que ele não sabia a razão, mas suspeitava.Começou também a aplicar pequenos golpes como se dizer eletricista e entrar nas casas alheias para furtar pequenos objetos sem muito valor como copos, panos de prato, bonés e perfumes baratos.

E no seu íntimo José ria da sua conversa antiga com sua consciência, ele havia se safado.Estava bem, afinal quem não faz um malfeito de vez em quando?Mas ele parecia até gostar da coisa.Ora, se eles estão aí com suas vidas feitas, nada mais justo do que eu mostrar a eles um pouco de dor, certo?E José sorria, os olhos pequenos na face tosca, uns olhos de criança que ainda não conhece a realidade.

Epílogo

Homem, 52 anos, encontrado morto com ferimento por arma de fogo na região temporal direita em residência de aluguel.Aparente suicídio.O dono do imóvel afirma que o locatário era um homem quieto que bebia muito nos finais de semana e tinha múltiplos empregos, aparecia pouco no imóvel e sempre pagava em dia, apesar de já ter pago o aluguel em espécie (relógios, perfumes, jóias).

Ao lado do corpo, foi encontrada a seguinte nota transcrita pelo perito:

“Eu sabia que ela ia voltar, a maldita.E continua morena.Que merda, eu que sempre gostei mais das loiras.”