segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Sombra

Apaixonar-se é morrer em silêncio. O médico se nutre da dor, da queixa e do pranto. As notícias são sempre negras a princípio, para talvez se tornarem felizes. Mas a essência são as lágrimas. Há uma beleza nisso. Há uma beleza em compartilhar o medo, há um pouco de luz nas trevas macias da tristeza. O homem é frágil, e o médico mais ainda. Sua fragilidade reside na esperança, no quiçá sorrir outra vez. Carregar as mágoas próprias e alheias é um fardo feliz. Não há mártir aí, somente o tentar quantas vezes for preciso para selar a escuridão por trás das portas frias dos hospitais. O médico é um apaixonado. O médico é feito de sombra.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Conheci uma cidade certa vez que se dizia apolítica. Bem longe daqui, nem me lembro mais exatamente seu lugar no mapa. Talvez nem no mapa estivesse, essa cidade, pois não fazia parte de nada relacionado à política. Era pequena, quieta. As portas ainda de madeira, atávicas. Todo mundo vivia um estado de semi-embriaguez deliquente, quero dizer, havia pouca lei, ninguém fazia muita questão de escolher a polícia. Mas tudo bem, haviam poucos ladrões. Grandes ladrões não sobrevivem sem política.

O comércio era assim do jeito que o comércio é no interior: uma venda a fazer seu quase-escambo com o pouco de moeda circulante, cobrando dos cidadãos (podemos assim chamá-los?) quase o preço escravizante das antigas fazendas de café. Não que isso fosse um problema muito sério, tudo era antigo por ali. Até mesmo as mentes. Mas talvez justamente por ter esse ar de pacatez, o lugarejo era muito tranqüilo. Parado. Morto quase.

As tentativas de incutir algum tipo de política naquela cidade só transformaram o substantivo: política virou politicagem. Coisa de poucos, para poucos. Não que isso fosse muito diferente de qualquer outro lugar, mas ali era quase patológico, fazia parte da rotina, estava sempre lá. Mas apesar da politicagem do lugar (e sua politicalha) estarem sempre por lá, o problema era muito tímido. Não que fosse pequeno, pois era enorme, mas talvez por tão grande e silencioso, passasse despercebido. Quase não se ouvia falar na falta que a política fazia naquele lugar, mas também, isso acontece em quase toda parte.

O povo, (assim é menos político que “cidadão”) quando ouvia os politiquilhos falando, achava muito bonito, quase engraçado até. Mas era uma gente muito ocupada, estranhamente ocupada para uma cidade tão pacata. Viviam atarefados, tensos, e nos momentos de lazer ocupavam os bares e cafés freneticamente: era preciso esquecer os problemas com alguma coisa.

Esquecer. Nisso eles eram bons. Pouco ficava nas mentes daquela gente, tão ocupada com tanta coisa. Esquecer era mais fácil, era necessário até, uma vez que sempre haviam mais e mais coisas a serem feitas, compromissos inadiáveis. Diziam que havia muito ouro por perto da cidade.

Era até lenda naquelas redondezas que os habitantes da cidade um dia seriam todos muito ricos, conseqüência do trabalho árduo que realizavam. As outras vereanças próximas diziam que o trabalho dos vizinhos era complicadíssimo e que somente poucas pessoas moravam naquela cidade porque eram as que davam conta do recado. Mas até os autóctones as vezes se perguntavam o que era exatamente que estavam fazendo.

Nunca soube se a cidade deu certo. Parou de se comunicar, as estradas deterioraram-se (o trabalho dos moradores certamente não envolvia estradas) e os geógrafos logo a esqueceram, parecia estar tão bem sozinha, ilha que era. Mas tudo isso foi num lugar longe, longe daqui.

Um deserto branco

antigo mar de sal.

Meu açúcar de engenho

meu medo,

meu empenho.


Eu percorri a imensidão

do rosto alvo,

da tez macia:

não sei se podia

não sei se devia.


Mas cada passo meu,

crasso.

Cada parada minha

muita,mesquinha.


É que eras tímida

e estes meus olhos passeadores

a andar por ti

eram lentos,

a própria marcha dos amores.

Pedro Assis 2011-04-28

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Eu naquele tempo

Meus dentes arpões

Sangrando a carne dos dias

O gosto doce do porvir

Hoje

Lâminas cegas

Cócegas

Na cútis do tempo

domingo, 14 de novembro de 2010

Abandono III

-Sabe Cristina....é Cristina né?...Então Cristina, antes de fazer isso eu quero te contar uma história e queria muito que você escutasse, tudo bem por você? Pode só balançar a cabeça, Cristina.

-.......

-Não, assim não Cristina, não foi assim que a gente combinou, lembra?Deixa eu contar a história e depois a gente continua.

-.......

-Então Cristina, quando eu comecei a fazer isso eu era um pouco mais novo,mas não via muito sentido pra minha vida sabe? Mas era legal (você não odeia quando as pessoas descrevem as coisas com essa palavra?), eu gostava de certas coisas.Você sabe do que eu gostava, Cristina?

-.......

-Não fica com raiva de mim só porque eu te faço perguntas, imagina que chato se eu não fizesse, o que seria desse momento? Não faz assim Cristina...

-........

-Tudo bem. Eu gostava de tomar umas cervejas por aí à tarde. Não fazia muita diferença se era um fim de semana ou não, o calor é sempre o mesmo. Eu também ia muito ao cinema, era muito bom, muito bom mesmo, os filmes eram muito bonitos e as pessoas pareciam excitadas com a possibilidade de assistir a uma boa história. Você não me acha estranho por reparar assim nas pessoas, acha?

-......

-Imaginei mesmo. Eu também gostava de ouvir o rádio, principalmente de ouvir as pessoas conversando, parecia que elas conversavam comigo. Quase ninguém conversa comigo.

-......

-Por quê o sarcasmo Cristina?

-......

-Bom vô continuar pra chegar logo ao fim da história, você deve estar entediada.

-.....

-Acontece que um dia eu encontrei um sujeito meio louco que dizia ser o meu Prazer. Achei que fosse uma piada de mau gosto, mas continuei conversando com ele, quase ninguém conversa comigo. Ele disse alguma coisa sobre estar me abandonando e que eu não iria sentir mais prazer mas que eu ia encontrar prazer nos outros.

-.....

-Pois é, estranho né? Mas aí como ele disse isso eu comecei a procurar, afinal ele me parecia ser um sujeito que entendia das coisas. Aliás ele foi a primeira pessoa em quem eu comecei a procurar, mas não tava lá, e eu procurei bem.

-.....

-Viu Cristina? Era isso que eu tinha pra te contar, agora eu vou procurar o prazer em você....

-.....

-Não se preocupa não, eu já fiz isso muitas vezes Cristina, prometo que eu vou procurar em cada canto.

-.....

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-Não, não adianta tentar gritar Cristina, a mordaça tá bem apertada, e se você desmaiar denovo eu vou ter que ligar o maçarico pra te acordar.....logo agora que eu tô sentindo que vou encontrar, em algum lugar aí dentro eu vou encontrar.....

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Telefone

-Alô.

-Alô, quem fala?

-É o Henrique

-Boa tarde seu Henrique, aqui quem fala é Júlia da central de relacionamento dos cartões Visa.

-Pois não Júlia.

-Estamos ligando para averiguar a situação do plano de faturas automáticas do senhor.

-Certo....

-É que nós vamos estar fazendo uma pesquisa de opinião dentro de algumas semanas e gostaríamos de saber se o senhor pode estar colaborando nesse período.

-Júlia, olha, eu sou um sujeito ocupado e ,assim, não quero parecer grosso ou nada mas esse tipo de coisa não é pra mim.

-Certo seu Henrique então a central Visa agradece e tenha uma boa tarde.

-Perae, fácil assim?

-Perdão senhor?

-É, vocês sempre enfiam uma promoção goela abaixo dagente. Dessa vez não vai ter não?

-Desculpe senhor, não estamos tendo nenhuma promoção no momento.

-Ah, ta certo então.

-Senhor Henrique...

-Oi

-Se o senhor quiser eu posso estar realizando a pesquisa nesse momento.

-Hmm tudo bem então.

-Então se o senhor não tem nenhuma objeção eu vou fazer algumas perguntas.

-Sem problemas

-Estado civil?

-Solteiro.....

-Profissão?

-Desempregado.

-Tá seu Henrique, eu sei que não é da minha conta, mas o senhor não disse ali em cima que era um sujeito ocupado?

-Era pra tirar você do meu pé Júlia. Você e esses gerundismos horrorosos que você vai estar utilizando.

-Poxa seu Henrique, que falta de consideração.

-Ta Júlia, me desculpe..............peraí, isso num era pra ser uma pesquisa de opinião, porque a gente tá tendo essa conversa?

-Desculpe seu Henrique, eu paro se o senhor quiser.

-Não Júlia, não é assim, pode continuar.

-Ai seu Henrique sabe o que é? Eu ando trabalhando demais....

-Imagino....

-Aqui no serviço a gente entra às seis da manhã e só sai às seis da tarde...

-Júlia.......

-Oi seu Henrique

-A pesquisa, Júlia.

-Ai é mesmo né seu Henrique

-Pois é, sou desempregado mas não sou desocupado né Júlia.

-Tá, desculpa seu Henrique, vamos continuar.

-Vai

-Que nota o senhor dá ao atendimento do seu gerente?

-Hmmmm, sete

-Que nota o senhor dá ao atendimento por telefone?

-Três.

-Quê isso seu Henrique! Três?

-É, eu dei três porquê você sabe o que é um gerundismo.Devia dar um zero por você saber e continuar fazendo.

-Nossa seu Henrique,grosseria heim.

-Quer ganhar dois Júlia?

-Tá bom, tá bom,vamos continuar.

.............................................................................................................................

-Pronto seu Henrique, acabou a pesquisa.

-Beleza, é só isso?

-É sim seu Henrique, o Visa agradece sua colaboração.

-Tá certo......Vem cá Júlia, será que eu podia te encontrar qualquer dia desses?

-Quê isso seu Henrique, tá me achando com voz de tele-sexo?

-Não é isso não Júlia, é que tinha um tempão que eu não conversava com uma mulher...

-Ah foi por isso então que o senhor puxou o assunto da promoção né?

-Pois é, mais ou menos...

-Olha seu Henrique, vô te dar um conselho

-Pois dê Júlia, tô precisando.

-VÊ SE PÁRA DE ALUGAR MINHA ORELHA QUE A OPERADORA DE TELEMARKETING AQUI SOU EU.

tu-tu-tu......

Abandono II

I

O homem com ar de malandro entrou na cozinha como se fosse íntimo da casa:

-Bom dia! O negócio é o seguinte, Lia: diferente da minha prima Consciência, que é cheia de não-me-toques e enrolação, eu não fico cozinhando o galo; eu sou o seu Amor e estou saindo do seu coração porquê eu dei um jeito de dar uma espiadinha no que vai rolar lá na frente e acontece que você tá fodida minha filha, fodidinha da silva.

O sujeito nem parecia respirar, descarregava uma frase depois da outra numa saraivada de informações incoerentes para Lia mas que pareciam fazer todo o sentido para ele e até serem bastante coerentes para um cara numa camisa florida e calções acima dos joelhos com uns óculos escuros de quem não quer muito dar bola pra ninguém.

Lia de alguma maneira não se importou com o fato de um total estranho ter invadido sua intimidade e se sentou ainda com uma xícara de café fumegando. De repente ela começou a fazer perguntas como quem tira dúvidas depois de uma palestra:

-Quem é você?

-Eu sou o Amor minha filha, Aquele com “Azão” maiúsculo sabe? Que fazia tudo dar certo nas histórias da sua infância e ainda hoje faz esse seu coração dar uns pulos maiores que o esperado. Sô eu, ao vivo e à cores.

-Tá fazendo o quê conversando comigo?

-Explica minha filha, você é muito devagar no esquema.

-Tô dizendo, eu num devia te controlar ou, sei lá, só sentir você? Quem disse que a gente conversa com o amor?

-Tá maluca minha filha? Sô eu é quem manda nesse circo de hormônios que você chama de cabeça, eu sou o manda-chuva no pedaço ,não importa o que digam a Consciência ou a Razão, aquelas estraga-prazeres. Aliás por falar nisso, pode me interromper a vontade sabia? É que eu falo muito. Mas e aí entendeu?

-É, eu saquei que é você e tal, o tal do amor e tudo mais, mas pra quê a visita? Até hoje você teve meio ausente né?

-Pois é. Foi sobre isso que eu vim conversar. Eu sou meio sumido assim porquê nem eu sei quando vou poder sair por aí fazendo uma boa farra, aí fica meio difícil, mas tem gente que me vê o tempo todo, não dá pra saber quem vai ter essa sorte.

-Ou esse azar....

-Iiiih, num azeda comigo não que sua chance de ficar sabendo o que vai rolar por muito tempo nessa sua vidinha de meia pataca depende da minha boa vontade.

-Caaara como é chato esse amor!

-Tá, fica caladinha aí e escuta. Como eu já disse antes de começar essa palhaçada de conversa, eu tô dando o fora.

-Hmmm como assim, vai embora sem nunca ter feito nada?

-Há, eu já vi o que vem por aí e num vai ser nada bonito, acredite em mim, eu tô te fazendo um favor garota.

-Tá mesmo, pode se mandar.

-Num tá nem curiosa pra saber o que eu vi? O que vai rolar nesse seu coraçãozinho mixuruca?

-Putz, se vai te mandar embora mais rápido, pode contar à vontade.

-Tá, o negócio é que eu dei um jeito de espiar como vai ser sua vida amorosa. E eu descobri que a carga horária é demais pra mim. Não to dizendo que você vai conhecer sete mil pessoas especiais, tô dizendo que vai conhecer só uma e ó, prestenção pra num parecer uma palhaça depois: NÃO VAI DAR CERTO, beleza? Aí você vai por a culpa em mim, xingar todas as formas de divindades possíveis e maldizer a coitada da Sorte por muito tempo. Aí eu resolvi poupar todo mundo dessa trabalheira e dar no pé. Já disse que você pode me interromper? Eu falo demais e esqueço as coisas meio rápido. Bom é isso.

-Uau, é muita coisa pra uma conversa na cozinha essa hora. Bom, tem alguma coisa que eu posso fazer?

-Encomendas. Eu vô pras Bahamas.

-Caramba, meu amor ainda é folgado.

-Quem disse que o amor não tira férias era um baita retardado, quem não tira férias é a razão. Bom, eu to de saída, té mais. Só pra avisar: não adianta me procurar em bicho de estimação, pornografia barata ou dieta milagrosa, quando eu vô eu vô mesmo minha filha, boa Sorte.

-Então tá né........

II

Lia sempre se culpou um pouquinho pelo seu jeito complacente: no dia em que conversou com o Amor, não perguntou se valia a pena tentar, quanto tempo ia durar ou até mesmo como era a vida sem ele. Teve que aprender com a experiência. Mas como não sabia o que era amar, seguiu viagem numa boa pela vida.

A todos os apelos de possíveis pretendentes, Lia sempre repetia as mesmas palavras: “Vá procurar quem te queira, não seja burro homem, eu não fui feita pra essas coisas, me deixe que comigo estou ótima.”. Mas tudo num ar de indiferença polida que rendia os homens e os deixava incapazes de odiar aquela mulher. Simplesmente entendiam, depois de muito tempo, que era uma mulher destinada à solidão.

III

Já quase não se lembrava da imagem do homem que a visitara dizendo ser seu amor. Só restava a forte lembrança do sentimento, da aura daquela conversa pousada na cozinha, na memória, quando a porta, agora outra porta em outra cozinha com outras lembranças, se abriu sem cerimônia.

-Lia...

Era o mesmo homem de tanto tempo atrás, nem mais velho, nem mais novo.

-Você? ....Deu saudade?

-Não vai nem me dar um oi?

-Que foi que anda caladinho agora? E por que só eu tenho cabelo branco nessa conversa?

-Sabe como é né, eu “não tenho idade”.

-Hmmm...e aí, passou uma boa temporada nas Bahamas heim?

-Poxa, não brinca com coisa séria Lia, não tá vendo que eu tô mal?

-Aham, e desde quando o amor precisa de psicóloga?

-Você não sabe a dificuldade que passa um amor sem coração, faz um mal danado, eu não fazia idéia, era burro naquela época.

-E antipático.....

-Tá..

-E egoísta...

-Tá bom, reconheço.

-Assim fácil?

-Poxa, quer que eu faça o quê? Vou beijar seus pés?

-Nah, coisa mais piegas, ainda mais pra um cara que nem você.

-Tem amor por aí que faz isso...nem te conto, é falso que só.

-Continua falando mal dos outros né......

-Foi sem quere Lia, sem querer.

-Tudo bem, depois que o gato comeu um pedaço da sua língua eu até que gosto da sua conversa, ficou mais adulto.

-Eu te disse que era burro naquela época, agora eu sei o mal que causei e.....

-Só se foi pra você mesmo, eu tô aqui numa boa.

-Mas é claro Lia, você nunca soube como seria se eu tivesse continuado aqui.

-E nem começa porquê não quero saber.Nem vem me confundir agora que já

pus a mesa pra um esse tempo todo.Passo muito bem, obrigada, e espero que você também passe muito bem, longe daqui.Se não se importa queria que você fosse embora sem me aporrinhar com perguntas ou trololó, tenho uma porção de coisa pra fazer e conversar contigo não é uma delas, meu filho.

IV

O amor foi embora outra vez, mas agora com um leve sorriso de quem sabe que deixou uma marca; Lia estava falando muito, como ele certa época fazia.