quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Abandono II

I

O homem com ar de malandro entrou na cozinha como se fosse íntimo da casa:

-Bom dia! O negócio é o seguinte, Lia: diferente da minha prima Consciência, que é cheia de não-me-toques e enrolação, eu não fico cozinhando o galo; eu sou o seu Amor e estou saindo do seu coração porquê eu dei um jeito de dar uma espiadinha no que vai rolar lá na frente e acontece que você tá fodida minha filha, fodidinha da silva.

O sujeito nem parecia respirar, descarregava uma frase depois da outra numa saraivada de informações incoerentes para Lia mas que pareciam fazer todo o sentido para ele e até serem bastante coerentes para um cara numa camisa florida e calções acima dos joelhos com uns óculos escuros de quem não quer muito dar bola pra ninguém.

Lia de alguma maneira não se importou com o fato de um total estranho ter invadido sua intimidade e se sentou ainda com uma xícara de café fumegando. De repente ela começou a fazer perguntas como quem tira dúvidas depois de uma palestra:

-Quem é você?

-Eu sou o Amor minha filha, Aquele com “Azão” maiúsculo sabe? Que fazia tudo dar certo nas histórias da sua infância e ainda hoje faz esse seu coração dar uns pulos maiores que o esperado. Sô eu, ao vivo e à cores.

-Tá fazendo o quê conversando comigo?

-Explica minha filha, você é muito devagar no esquema.

-Tô dizendo, eu num devia te controlar ou, sei lá, só sentir você? Quem disse que a gente conversa com o amor?

-Tá maluca minha filha? Sô eu é quem manda nesse circo de hormônios que você chama de cabeça, eu sou o manda-chuva no pedaço ,não importa o que digam a Consciência ou a Razão, aquelas estraga-prazeres. Aliás por falar nisso, pode me interromper a vontade sabia? É que eu falo muito. Mas e aí entendeu?

-É, eu saquei que é você e tal, o tal do amor e tudo mais, mas pra quê a visita? Até hoje você teve meio ausente né?

-Pois é. Foi sobre isso que eu vim conversar. Eu sou meio sumido assim porquê nem eu sei quando vou poder sair por aí fazendo uma boa farra, aí fica meio difícil, mas tem gente que me vê o tempo todo, não dá pra saber quem vai ter essa sorte.

-Ou esse azar....

-Iiiih, num azeda comigo não que sua chance de ficar sabendo o que vai rolar por muito tempo nessa sua vidinha de meia pataca depende da minha boa vontade.

-Caaara como é chato esse amor!

-Tá, fica caladinha aí e escuta. Como eu já disse antes de começar essa palhaçada de conversa, eu tô dando o fora.

-Hmmm como assim, vai embora sem nunca ter feito nada?

-Há, eu já vi o que vem por aí e num vai ser nada bonito, acredite em mim, eu tô te fazendo um favor garota.

-Tá mesmo, pode se mandar.

-Num tá nem curiosa pra saber o que eu vi? O que vai rolar nesse seu coraçãozinho mixuruca?

-Putz, se vai te mandar embora mais rápido, pode contar à vontade.

-Tá, o negócio é que eu dei um jeito de espiar como vai ser sua vida amorosa. E eu descobri que a carga horária é demais pra mim. Não to dizendo que você vai conhecer sete mil pessoas especiais, tô dizendo que vai conhecer só uma e ó, prestenção pra num parecer uma palhaça depois: NÃO VAI DAR CERTO, beleza? Aí você vai por a culpa em mim, xingar todas as formas de divindades possíveis e maldizer a coitada da Sorte por muito tempo. Aí eu resolvi poupar todo mundo dessa trabalheira e dar no pé. Já disse que você pode me interromper? Eu falo demais e esqueço as coisas meio rápido. Bom é isso.

-Uau, é muita coisa pra uma conversa na cozinha essa hora. Bom, tem alguma coisa que eu posso fazer?

-Encomendas. Eu vô pras Bahamas.

-Caramba, meu amor ainda é folgado.

-Quem disse que o amor não tira férias era um baita retardado, quem não tira férias é a razão. Bom, eu to de saída, té mais. Só pra avisar: não adianta me procurar em bicho de estimação, pornografia barata ou dieta milagrosa, quando eu vô eu vô mesmo minha filha, boa Sorte.

-Então tá né........

II

Lia sempre se culpou um pouquinho pelo seu jeito complacente: no dia em que conversou com o Amor, não perguntou se valia a pena tentar, quanto tempo ia durar ou até mesmo como era a vida sem ele. Teve que aprender com a experiência. Mas como não sabia o que era amar, seguiu viagem numa boa pela vida.

A todos os apelos de possíveis pretendentes, Lia sempre repetia as mesmas palavras: “Vá procurar quem te queira, não seja burro homem, eu não fui feita pra essas coisas, me deixe que comigo estou ótima.”. Mas tudo num ar de indiferença polida que rendia os homens e os deixava incapazes de odiar aquela mulher. Simplesmente entendiam, depois de muito tempo, que era uma mulher destinada à solidão.

III

Já quase não se lembrava da imagem do homem que a visitara dizendo ser seu amor. Só restava a forte lembrança do sentimento, da aura daquela conversa pousada na cozinha, na memória, quando a porta, agora outra porta em outra cozinha com outras lembranças, se abriu sem cerimônia.

-Lia...

Era o mesmo homem de tanto tempo atrás, nem mais velho, nem mais novo.

-Você? ....Deu saudade?

-Não vai nem me dar um oi?

-Que foi que anda caladinho agora? E por que só eu tenho cabelo branco nessa conversa?

-Sabe como é né, eu “não tenho idade”.

-Hmmm...e aí, passou uma boa temporada nas Bahamas heim?

-Poxa, não brinca com coisa séria Lia, não tá vendo que eu tô mal?

-Aham, e desde quando o amor precisa de psicóloga?

-Você não sabe a dificuldade que passa um amor sem coração, faz um mal danado, eu não fazia idéia, era burro naquela época.

-E antipático.....

-Tá..

-E egoísta...

-Tá bom, reconheço.

-Assim fácil?

-Poxa, quer que eu faça o quê? Vou beijar seus pés?

-Nah, coisa mais piegas, ainda mais pra um cara que nem você.

-Tem amor por aí que faz isso...nem te conto, é falso que só.

-Continua falando mal dos outros né......

-Foi sem quere Lia, sem querer.

-Tudo bem, depois que o gato comeu um pedaço da sua língua eu até que gosto da sua conversa, ficou mais adulto.

-Eu te disse que era burro naquela época, agora eu sei o mal que causei e.....

-Só se foi pra você mesmo, eu tô aqui numa boa.

-Mas é claro Lia, você nunca soube como seria se eu tivesse continuado aqui.

-E nem começa porquê não quero saber.Nem vem me confundir agora que já

pus a mesa pra um esse tempo todo.Passo muito bem, obrigada, e espero que você também passe muito bem, longe daqui.Se não se importa queria que você fosse embora sem me aporrinhar com perguntas ou trololó, tenho uma porção de coisa pra fazer e conversar contigo não é uma delas, meu filho.

IV

O amor foi embora outra vez, mas agora com um leve sorriso de quem sabe que deixou uma marca; Lia estava falando muito, como ele certa época fazia.

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